segunda-feira, 19 de junho de 2006

CULTURA, A FRÁGIL

Transcrevo do blog ABRUPTO um excelente texto sobre cultura. Pacheco Pereira usa uma objectividade que preenche toda a amplitude do tema. Julgo que foi lá colocado em 2004.

«SCRITTI VENETI 13



O que é a cultura? Eu respondo olhando esta escultura que está num dos lados da Catedral de S. Marcos. Nada do que ela representa existe, a não ser o doge ajoelhado. Existe? Não existe nenhum doge que se tenha ajoelhado diante de um leão. Não há na terra nenhum leão alado, com face humana, segurando um livro. O leão olha para a cidade, para o mar, o doge para o leão. Tudo é símbolo, sobre símbolo, sobre símbolo. O leão representa, como se sabe, uma abstracção: a república. A primeira palavra do livro é outra abstracção, mais desejada do que tudo, “Pax”. O doge ajoelha-se perante abstracções: o poder está no leão e não no doge, o leão fala-lhe de paz e mostra o livro aberto ao povo, que não se vê, mas vê.

É isto a cultura: uma invenção da imaginação humana, contra natura, contra o terror, contra o caos, por uma ordem superior feita de um teatro de convenções simbólicas que nos protegem, e que são a civilização. Tudo muito frágil, tudo construído, tudo inventado, tudo quase no limiar de nada. O doge pode pôr-se a pé e matar o leão, ou o leão comer o doge, o livro cair para a populaça o destruir, a primeira palavra pode não ser “Pax”, mas guerra. A cultura é uma frágil defesa, mas existe. Está ali, em pedra, símbolo de obediência do homem a convenções abstractas que ele criou e que só existem quando há vontade que existam. Nada depende mais da vontade do que a cultura e a civilização. Somos nós que as fazemos, somos nós que as desfazemos

1 comentário:

thorazine disse...

"A cultura é uma frágil defesa, mas existe. Está ali, em pedra, símbolo de obediência do homem a convenções abstractas que ele criou e que só existem quando há vontade que existam."

Concordo. A cultura muitas vezes não é a reflexão da civilização a que pertence. Talvez seja, como refere o autor, fruto de quem teve vontade e imaginação para petrificar a sua sua visão ou devaneio sobre a civilização. E com a desculpa de ser cultura ou tradição ganharam a sua importância e valor muitas vezes fugindo à moral e à razão. Desculpas.