sexta-feira, 9 de junho de 2006

À MARGEM DO SISTEMA

«A identificação da Igreja com a sociedade organizada constitui a característica fundamental que distingue a Idade Média, tanto dos períodos históricos que a antecedem, como dos que lhe sucedem. Numa medida mais ampla, caracteriza a história europeia, desde o século IV ao século XVIII, isto é, desde Cons­tantino a Voltaire. Teoricamente, durante todo este período, só os crentes ortodoxos e obedientes usufruíam dos direitos da cidadania integral. Mas, no ocidente da Europa, tal doutrina só conseguiu plena vigência prática a partir do século VII. E, ao chegar ao século XVII, encontrava-se já tão marcada por excepções e contradições que se tornara inconcebível, mesmo idea1mente. Durante os primeiros séculos, contudo, as excepções mostravam-se raras, pelo que, razoavelmente, podia supor-se que tenderiam a desaparecer.
Na verdade, sempre existiram indivíduos à margem do sis­tema, mesmo dentro da área geográfica da cristandade ocidental, embora no melhor dos casos se tratasse de pessoas com direitos muito limitados. No pior dos casos, não possuíam sequer o direito de viver e, na melhor das hipóteses, eram judeus. As suas vidas e bens elementares encontravam-se protegidos pela lei eclesiástica e pelos interesses egoístas dos príncipes. Não podiam ser suprimidos pelo simples facto de serem judeus; não podiam ser convertidos à força; não podia retirar-se-lhes os filhos, para lhes dar educação cristã; permitia-se-lhes a prática da sua reli­gião, desde que não fizessem obra de proselitismo. Mas os governantes nada mais concediam que a estrita autorização de sobre­viverem como pudessem. «Por causa dos seus pecados» [da descrença], escreveu São Tomás de Aquino que,

sujeitos à servidão perpétua, os seus bens dependem do arbítrio doa governantes; estes não devem espoliá-los a um ponto tal que se vejam privados dos meios de subsistência,

Se tal era o caso da classe mais privilegiada dos seres marginais, dos consentidos inimigos de Deus, nem sequer se con­cedia o direito à vida aos que abandonavam a fé cristã e prefe­riam viver longe desta, por sua livre escolha. Viam-se varridos da existência pelo zelo popular, pela censura eclesiástica e acima de tudo pelo rigor de uma lógica imperturbável:

A heresia [de novo citamos Tomás de Aquino] é um pecado que, merece não só a excomunhão, mas também a morte, por ser pior corromper a Fé, que é a vida da alma, do que falsificar moeda, que governa a vida secular. E se os falsificadores são justamente eliminados pelos príncipes, como inimigos do bem comum, os here­ges merecem sem dúvida o mesmo castigo.

Numa palavra, a Igreja formava uma sociedade repressiva, tal como o é hoje o Estado moderno. Assim como este exige aos que se tornaram seus membros, por acidente de nascimento, que cumpram as leis, que contribuam para a defesa e para os serviços públicos e que subordinem os interesses particulares ao bem geral, também a Igreja da Idade Média exigia a todos os que se haviam tornado seus membros pelo acidente (chamemos­-lhe assim) do baptismo, a obrigatoriedade de lhe obedecerem em todas as suas normas.
O problema de determinar como se transforma uma dada pessoa num membro de certa comunidade política, preocupou bastantes teorizadores das origens e formação do Estado moderno. Mas, para os doutrinários do Estado-Igreja medieval, tal pro­blema afigurava-se-Ihes fácil, pois a resposta consistia no bap­tismo, em que os padrinhos aceitavam, em nome da criança, determinados compromissos que a condicionaram legalmente durante toda a vida. De um ponto de vista social, estabelecia-se um contrato entre a criança e a Igreja, que não podia deixar de ser cumprido. O baptismo era assim, para a maior parte dos membros da Igreja, tão involuntário como o nascimento, e signi­ficava obrigações de um tipo permanente e coercivo, semelhantes às que aquele representa no Estado moderno, com a agravante de não poder renunciar a elas.»
R. W. Southern, in "A IGREJA MEDIEVAL"

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