quarta-feira, 20 de setembro de 2006

A LER COM ATENÇÃO

Os intocáveis
João Teixeira Lopes
O fim do contrato social do pós-Segunda Guerra Mundial e da regulação de tipo keynesiano, a partir de meados da década de 70, em particular após os choques petrolíferos, leva, por parte do capitalismo, a uma aceleração sem precedentes do tempo de circulação do capital: flexibilidade e volatilidade, cariz cada vez mais efémero dos produtos e mercadorias, estonteante velocidade dos fluxos financeiros, inovação tecnológica, automação, dispersão geográfica para zonas onde o trabalho é mais fácil de controlar...
Aliás, o grande sacrificado das grandes mutações é, precisamente, o trabalhador. As dificuldades económicas apontam-lhe a pistola: os salários têm de descer; o trabalho tem de passar de estável a precário; os despedimentos têm de ser facilitados ao limite; a organização colectiva do trabalho despedaçada, em nome da drástica e "urgente" necessidade de diminuição dos custos de trabalho e do aumento de produtividade, num cenário de competitividade global. Conhecemos, no concreto, o que tudo isto significa nos dias de hoje: códigos do trabalho amigos dos empresários; aumento do desemprego; empresas de trabalho temporário que contratam ao mês, ao dia ou mesmo à manhã; diminuição drástica do tempo de lazer e aumento disfarçado ou às claras da jornada de trabalho; disseminação, em todos os níveis de qualificação, de uma enorme violência psicológica, correlata pós-moderna do chicote esclavagista: ninguém ousa reclamar o pagamento das horas extraordinárias, nem, tão-pouco, sair à hora legalmente estipulada - o medo sobressai como nota dominante, impedindo solidariedades profissionais e/ou de classe ou a mera reivindicação de direitos elementares.
Nada disto seria possível sem um magma ideológico poderosíssimo, que consegue impor como pensamento dominante a selvajaria organizada através da disseminação do medo. Inevitabilidade e fatalidade, em suma, de uma nova era em que os domínios subtraídos ao lucro (serviços públicos) e a redistribuição (baseada em impostos progressivos e na taxação das grandes fortunas e das mais-valias) pertencem a um passado longínquo e cujos defensores seriam trogloditas fossilizados. Mas o pior desta constelação hegemónica é a culpabilização do próprio trabalhador e/ou desempregado: não há trabalho, os salários não aumentam, os direitos recuam? A culpa é individual (de cada trabalhador em si) ou colectiva (os trabalhadores em geral). Acresce, por isso, a uma enorme vulnerabilidade social (o trabalhador de hoje pode ser o desempregado ou o pobre de amanhã), uma gigantesca pressão individual subjectivamente vivida como depressão, pânico, autodepreciação.
Atente-se na repercussão e tratamento mediáticos de um relevante estudo do Instituto de Emprego e Formação Profissional. A ideia que por todo o lado perpassou foi a de que os desempregados inscritos nos centros de emprego, esses grandes malandros, não aceitam metade das ofertas de emprego! Ora, uma leitura um pouco mais atenta do relatório permite-nos facilmente concluir que: a) tal volume de ofertas resume-se a pouco mais de nove mil (quando os inscritos ultrapassam os 430 mil!); b) as razões assentam, principalmente, no desajustamento entre as qualificações dos trabalhadores e as ofertas empresariais (que tal contratar por tuta e meia um operário qualificado ou um quadro superior?), na mobilidade geográfica (morar no Porto e ir trabalhar para Castelo Branco...) e nas baixas remunerações, em geral inferiores ao próprio subsídio de desemprego!!!
Daí que importe falar agora na outra parte da relação. A burguesia nacional, desde os tempos do capitalismo mercantil e da política de transporte dos Descobrimentos, revelou-se, com raras excepções, mais propensa ao saque, ao lucro imediato e à exploração do que ao investimento produtivo, à inovação, à qualificação e ao risco. Os nossos maiores patrões prosperam nas grandes superfícies (hipermercados, centros comerciais), nas telecomunicações e na especulação imobiliária. Pouco mais. E lucram, desmedidamente, com um Estado que obriga os trabalhadores aos maiores sacrifícios e a uma violência social cada vez maior, fazendo, tantas vezes por eles, o trabalho sujo, como tem feito o Governo Sócrates (as promessas de criação de 150 mil empregos?; as anunciadas alterações à arbitrariedade patronal plasmadas no Código do Trabalho?; as novas regras de subsídio de emprego que penalizam os jovens?; a constante retórica do "privilegiado", que faz com que o velho desconfie do jovem, o trabalhador do público do privado, o precário do por ora estável?; o desinvestimento no ensino superior, que todos os anos tem menos dinheiro no Orçamento do Estado?).
Um Estado que não lhes cobra devidamente os impostos, isenta boa parte das suas mais-valias e favorece as fugas para os paraísos fiscais. Um Estado que assiste, impávido, sem sequer se questionar, a uma mais-valia potencial de 680 milhões de euros na Galp por parte do grupo Amorim, em apenas oito meses e a um lucro superlativo de 85 milhões de euros da Sonae no primeiro semestre deste ano. Mas nos centros comerciais, só para retomar o paradoxo, um quarto dos trabalhadores não tem direito a subsídio de refeição, mais de metade está em situação de precariedade (muitos sem contrato), trabalhando mais de doze horas. No entanto, ousar combater a exploração e os exploradores, que, de forma legal, com a cumplicidade do Estado e de forma ilegal, amiúde, roubam muita da riqueza que criam para si, é um crime de lesa-majestade que agita, em uníssono, os novos e velhos cães de guarda. Sociólogo
No Público de 14.09.2006. Voltarei a este artigo que transcrevo na íntegra, sobretudo para realçar o meu último destaque a azul.

Sem comentários: