quarta-feira, 29 de novembro de 2006

CADA UM DE NÓS TEM O SEU GÓLGOTA

Só que há uns que o têm com a rampa muito mais inclinada do que outros. Hoje coloco aqui uma velharia que escrevi há uns anos para os Amigos e Pais das Crianças Deficientes, e que foi publicada aqui em Ponta Delgada no "Açoriano Oriental", se não me falha a memória. Foi escrito para um momento. Mas a imagem mantém-se

PIETÁ

Numa destas manhãs invernosas, em que o aconchego uterino dos lençóis é um apelo candente, tive uma visão distante de um sonho sublime. Eu vi uma Mãe com o seu filho de 5 anos carregado nos braços. Eu vi uma Mãe como suporte único de seu filho deficiente de uma paralisia cerebral. Eu tive a visão de Cristo nos braços de sua Mãe após ter sido apeado da cruz. Eu vi uma mãe grávida transportando no seu regaço grávido de nova vida seu filho deficiente. Numa brumosa manhã a vi, algures nos Arrifes, a caminho de uma escola normal onde seu filho é depositado e desamparado por uma hora diária. Numa brumosa manhã uma Mãe nos Arrifes sobe o Seu Calvário a caminho do monte Gólgata que será aquela singela escola normal. Não foi um sonho. Eu vi uma Pietá. Não a beleza marmórea de Miguel Angelo encerrada entre outros tesouros no Vaticano. Mas a Pietá real, a sofredora, com o seu Cristo nos braços, também ele vitima de erros de avaliação com objectivos pouco claros de popularidade política, tal como Jesus o foi de Pilatos há 1967 anos atrás. Também hoje, como há quase dois mil anos, há algures um político que igualmente lava as mãos do problema. Ele não tem filhos deficientes. Ele não quer saber da Pietá viva.
Mas eu vi uma mãe que carregava com Amor o seu filho sofredor. Eu não tinha braços para carregar o seu fardo. Eu não tinha lágrimas para chorar a sua dor. Eu não tenho imolação para arcar com os seus sofrimentos. Ninguém tem. Você, leitor, que tem filhos sãos e escorreitos, talvez ainda não tenha sentido a intensidade do drama pela simples razão de que os “média” se inibem de o informar. Talvez nunca tenha tido a visão que eu tive. Mas leitor, se não podemos arcar com o fardo, podemos suavizar o Calvário. Está nas nossas mãos sermos solidários e não nos acobardarmos, evitando que um qualquer sócio de partido político, empoleirado num gabinete para onde foi alcandorado por estranhos enigmas, destrua um ambiente físico com infra estruturas adequadas a suavizar o sofrimento de vítimas inocentes bem como o dos seus entes queridos. Numa manhã de bruma eu vi uma mãe que arrostava a sua gravidez carregando nos seus frágeis braços o seu filho para uma escola normal, transformada em Calvário pela insensibilidade de um decreto que não especificou os interesses que lhe eram subjacentes. Numa manhã de bruma eu chorei pela minha impotência, dominado pela raiva que sentia por nós todos que ainda votamos em abstracções, que são os partidos que nomeiam homens insensíveis e sem noção alguma de “res publica”. Nessa manhã de bruma eu vi Cristo nos Arrifes desprezado por políticos que ninguém escolheu, transportado por sua Mãe que o amparava com carinho das lanças que lhe cravaram no seu indefeso corpo enquanto lavavam as mãos da responsabilidade da sua inerência. Eu vi Cristo pregado pelas mãos de um secretário regional por não equacionar condignamente uma verdadeira política regional no âmbito de Educação Especial, e pela apatia de todos nós. Que Deus nos perdoe a nós todos (secretário inclusivo) pela maneira como tratamos o seu Filho. Tentemos todos reparar o erro em conjunto e harmonia tendo em vista o exemplo de Cristo. Bem hajam as pessoas de bem
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1 comentário:

MJ disse...

Bem... isto não é um simples post... É uma pérola literária!
Belíssimo!
Teria sido um egoísmo enorme não o ter partilhado connosco. Bem-haja porque o fez!

"Numa manhã de bruma eu chorei pela minha impotência"
Choro também algumas vezes, na minha escola, quando me deparo com crianças como esta e com os pais que carregam a sua cruz sozinhos.

Obrigada por ter divulgado o texto.

Beijo