sábado, 28 de junho de 2008

SÉCULO XXI

Mas o mais surpreendente é o facto de grande parte da população deste “Portugal Profundo” viver, de forma atávica, ainda em certa harmonia com o espírito destes lugares e enquadrada numa cosmovisão religiosa do mundo, absolutamente natural para ela. Esta ligação com os lugares é mantida através de tradições, cultos e lendas, mantendo-se ain­da vivos imensos vestígios de uma integração arcaica do ho­mem no cosmos, o que constitui um tesouro inestimável num mundo em fase acelerada de dessacralização (diríamos mesmo bestialização) da vida humana. Todavia, o homem é um ser reli­gioso por natureza (mesmo os sistemas chamados ateus têm os seus ídolos e as suas mitologias) pelo que, actualmente, e como reacção natural, emergem violentamente as chamadas patolo­gias do sagrado sob a forma de superstições religiosas alimen­tadas por líderes 'muito pouco religiosos', e por grupos es­piritualistas que seduzem o homem-exterior em lugar de pro­porcionarem a emergência da alma interior, o que é natural­mente doloroso para os hábitos entrópicos da personalidade. Com clarividência e alguma ironia, Carl Gustav Jung afirmou, em 1944: "Na realidade, não hesitamos em fazer as coisas mais absurdas a fim de escaparmos à nossa própria alma. Pratica-se a ioga indiana de qualquer escola, seguem-se regimes alimenta­res, aprende-se de cor a teosofia, rezam-se mecanicamente os textos místicos da literatura universal - tudo isto porque já não se consegue conviver consigo próprio e porque falta fé em que algo de útil possa brotar de nossa própria alma. Pouco a pouco esta última tomou-se aquela Nazaré da qual nada de bom se pode esperar, vai-se portanto procurá-la nos quatro cantos da terra: quanto mais distante e exótico, melhor". O eminente psicólogo colocou bem o dedo na ferida: o homem do terceiro milénio tem de restabelecer o diálogo com o seu inconsciente, tem de trazer à consciência o seu mundo mítico a fim de se auto-realizar, ou seja, deve levar a bom termo o seu processo de individuação abrindo-se à sua interioridade e dimensão espiri­tual. Por isso, André Malraux afirmou: "o século XXI será espiritual ou não será!".
Paulo Alexandre Loução, in "Portugal - Terra de Mistérios"

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