“A importância
estratégica de um canal regional de televisão para a sustentabilidade de uma
autonomia administrativa arquipelágica”
Num arquipélago é caracteristico, de quem os habita, uma noção forte de fronteira
e da existência do outro. Não existe uma fronteira de linha ténue, que permite
o contacto e a permeabilidade, antes pelo contrário, pois existem duas
fronteiras, à saída e à chegada, bem demarcadas pelas diferenças fisicas
entre os dois lados da fronteira, que impede a facilidade do contacto, para
além de se assemelhar a uma fronteira de guerra com o imenso espaço da terra de
ninguém, o mar insular. Esta circunstância modela não só o
relacionamento das sociedades em cada insula, bem como o de toda a sociedade
arquipelágica. Este factor geográfico sempre manteve as sociedades
arquipelágicas sob tensão, sobretudo pelo desconhecimento do outro que está
para lá da sua fronteira, da terra de ninguém e da fronteira do outro. As ilhas estão sempre
distantes, mesmo que
geográficamente estejam perto de outra ilha. Não há vizinhança entre ilhas por
impedimento do mar, pelo que não há convivio nem confraternização, sendo que
esta ausência gera desconfiança. Só o conhecimento sobre a vivência do outro
permite que a desconfiança se abata, e um convivio são seja possível.
E como se faz esse conhecimento? Um pouco
por leitura. Mas é um vector ténue, pois as imprensas insulares não têm grande
disseminação nos arquipélagos. De uma maneira geral acabam sempre por ser
paroquiais. E, como tal, pouco contribuem para o conhecimento do outro, mas
instilam a desconfiança comum aos bairrismos. Comunmente são as sua páginas
alimentadas por escribas defensores acérrimos dos interresses das suas ruas,
elevadas à dignidade de horizontes.
Outro meio é o rádio. Tem mais impacto, o qual lhe é dado
pelo imediato da disseminação da informação. Todavia esta capacidade é limitada
também pelo carácter paroquial que a sua pequena dimensão objectiva. E a
possibilidade que cada ilha tem de deter uma, ou mais, estações de rádio, justificado pelo
baixo custo do material para emitir, agrava a deterioração da qualidade e o
incremento do bairrismo.
Uma
outra via de divulgar conhecimento, e muita activa de há cinco para cá, é a
net. De fácil
aquisição e maneio. Com um caráter individual. E com uma disseminação
explosiva. Todavia, é assaz perceptível no mundo da blogosfera insular que existe uma guerra
de paixões bairristas, muitas vezes longe de uma racionalidade objectiva,
distorcendo intencionalmente as realidades e agudizando conflitos de percepção
do outro.
A televisão é a outra via, a mais capaz de pôr cada um em
contacto com a realidade do outro. O que pode ser dito tem de ser confirmado
com o que se vê. É esta capacidade de se ver a existência do outro que faz da
televisão o meio ideal para se esbater conflitos e se poder dialogar com
argumentos concretos. A governabilidade dos arquipélagos passa, hoje, por esta
capacidade da televisão. O que é uma realidade para os arquipelagos do Pacífico
e do Atlântico. Os arquipélagos de Cabo-Verde, Canárias e Açores comungam,
neste panorama, de uma realidade idêntica.
Mas centremo-nos no nosso Arquipélago e na sua autonomia
político-administrativa. Até porque os Açores são um caso peculiar. É uma região administrativa sem capital. Porque foi
essa a intenção. Até 1975 os Açores nunca tiveram uma unidade administrativa, se exceptuarmos um
curto período na era
pombalina. E depois de 1975 a existência de uma unidade, mas sem capital e com
a governabilidade dividida, na prática ancestral, de três polos de sediação de
poder. Para além do exercicio dos três poderes democráticos estar
polarizado de forma a sobrepor-se, na medida do possível, e a contentar a
prática ancestral, também a administração está tresmalhada por esses três polos
e fragmentada por todas as ilhas. Acresce a tudo isto a legislação eleitoral
regional que atribui a distribuição de mandatos parlamentares, por ilha, de
forma altamente distorcida face à proporção demográfica de cada ilha,
penalizando e corrompendo, assim, a essência democrática da representação
parlamentar. Esta prática de sediação do poder por três pólos condiciona o poder
executivo de tal forma, que este fica refém do jogo de equilíbrios entre as
forças políticas, sociais e económicas de cada ilha. Estas podem intervir em conjunto,
e com actuação solidária, por cada ilha, ou cada uma por si, se o social tiver
peso suficiente para influir ou o económico para condicionar. O político nunca
age isolado de um dos outros, nem em sistemas ditatoriais. Um exemplo, e bem
significativo, da tripolaridade é a universidade. Na ilha Terceira há toda uma estrutura
duplicada dos órgãos da academia. Havendo uma semana académica em data diferente
da existente em Ponta Delgada, para haver distinção e não subordinação. Para
além das tunas, associações e outras manifestações. Sendo certo que o corpo
discente, e quiçá o docente, não conhece nem comunga com o de Ponta Delgada. Só
a televisão, com as suas reportagens, põe uns perante os outros, permitindo,
assim, que tenham conhecimento do outro fomentando alguma possibilidade de
partilha. Mas há dois exemplos que elucidam bem o papel fulcral da televisão
regional no acesso ao conhecimento do outro e da partilha. E foco-os porque têm
origem nas duas ilhas com maior demografia, e, por isso, tradicionalmente mais
adversárias.
Um tem a ver com os Romeiros, que era uma prática só
existente na Ilha de S. Miguel, e que de há três anos a esta parte se realiza
também na ilha Terceira copiando a tradição de S. Miguel, de onde se deslocam
mestres de romeiros para ensinar a prática dessa tradição. Em sentido contrário
as touradas à corda, que só se praticavam nas ilhas do ex-distrito de Angra do
Heroísmo, mas com peso quase absoluto na ilha Terceira. Também de há três anos
para cá se estão a realizar na Ilha de S. Miguel. Isto só é possível porque a
televisão permitiu a visão e o entendimento da realidade do outro,
possibilitando, assim, a partilha.
Até ao aparecimento da
televisão em 1975 os açoreanos entendiam-se como tal por habitarem no mesmo
arquipélago. Todavia não se entendiam como unidade regional. Entendiam-se e
identificavam-se como ilha, mais tenuemente como pertencentes a um distrito,
porque as necessidades administrativas a isso obrigavam, mas não como
pertencentes a uma unidade regional arquipelágica. É a televisão que vem
introduzir esse conceito na cimentação do relacionamento a todos os níveis,
permitindo a assumpção da identidade regional e, consequentemente, a existência
de um governo regional. Também os professores Medeiros Ferreira e Machado Pires,
partilham este entendimento sobre o papel de relevo da televisão na autonomia.
A chave é o conhecimento do outro. É esse conhecimento que induz um tratamento
de harmonia nas relações inter-ilhas e a gestão dos conflitos sem se seccionar
nenhuma via de diálogo.
Também é a televisão que permite passar para o exterior da região a
realidade interna. Não só divulga a realidade insular para as outras ilhas como
também para o todo nacional, obstando que o todo nacional desconheça a parte
insular. Os problemas locais têm mais expressão televisiva na região do que no
plano nacional. Exemplo acutilante e imediato é a campanha autárquica nos
Açores, onde todos os concelhos terão expressão na televisão regional, enquanto
tal não acontece aos concelhos no Continente.
Aqui chegados não podemos
deixar de afirmar que a televisão regional é crucial e estratégica para a
autonomia regional arquipelágica. Se fosse extinto haveria sempre a
possibilidade real de um retrocesso do entendimento regional da identidade
açoreana pela parte dos açoreanos insulares, instalando-se novamente a terra de
ninguém entre as fronteiras.
Todavia um canal regional de
televisão sofre sempre de dois problemas graves. Um é interno, pois como é
frágil por actuar numa área dispersa e com interesses divergentes, se dirigida
de forma incompetente, poderá, para além de não cumprir a sua função, agravar a
desarmonia a que as ilhas são propensas. O outro é externo, que é a percepção
que os poderes políticos têm da televisão. Se tiverem uma visão redutora do
papel interventivo da televisão junto da sociedade insular, poderão asfixiá-la
na manipulação que dela fazem, cerceando o desenvolvimento das populações. Se
se alhearem da real importância da televisão poderão fazer colapsar a autonomia
político-administrativa. O equilíbrio entre estas duas posições é o garante do
desenvolvimento articulado e sustentado da autonomia.
Estratégia é o plano de acção
no terreno. Geoestratégia é o plano de acção face ao enquadramento geográfico.
O relacionamento inter-ilhas num arquipélago é geoestratégia à escala. Um canal
de televisão é uma ferramenta estratégica e um meio de desenvolvimento num
arquipélago que é um conglomerado divergente numa união de facto. Por isso
imprescindível para a sustentabilidade de uma unidade regional.
PDL, Fevereiro de 2010