terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

ENCANTAMENTO

Há mais de dez anos escrevi este artigo, que me solicitaram, para uma revista recém criada, de que já nem o nome lembro. Era para ser publicada no nº 4, mas não resistiu após o nº 3. se não estou em erro. Desencantei-o há dias. Revi o texto, e aqui o publico.


Encantamento

É a primeira emoção que inunda a sensibilidade de quem vê, pela primeira vez, a ilha. Vindo de fora, a ilha induz, na percepção do forasteiro, o encanto. Rompida a bruma pelo avião, só os olhos comunicam com a ilha, só eles interagem com os contornos e as cores que a ilha, qual mestre do oculto, permite à observação. Imagina-se, então, os que se aproximam de barco, para quem a ilha surge como um sonho flutuando que esgaça as neblinas. Porque, para um ilhéu, a ilha sempre flutua suspensa no tempo.
Actualmente a ilha começa sempre por ser uma, ou várias, fotografias coloridas com bons ângulos, de boas perspectivas, em bonitos dias. O papel da impressão da revista também ilude. A projecção do sonho está feita. Parte-se do sonho para o encantamento. E o primeiro contacto, aquele que impressiona, é encantamento. Pôr os pés na ilha, a sempre encantada, é a concretização do sonho.
A ilha é sempre um local idílico. Recolhido o fruto da primeira impressão, é com ele que o forasteiro caminha na ilha. Mas caminha entre realidades vividas cuja absorção escapa à gravação na película da primeira impressão. Há uma barreira transparente que inibe a percepção real por aquele que foi tocado pelo encantamento. E essa barreira é muito mais contundente nos dias solarengos do que nos dias brumosos das ilhas. O forasteiro, todo aquele que chega vindo de além-mar, passeia-se entre as pessoas e paisagens, construções e animais. Passeia-se usufruindo do clamor dos seus sentidos, atendendo, assim, muito pouco aos pontos que, ligados entre si, lhe dariam a composição da realidade, que substituirá a alheia. O forasteiro cruza-se com outras pessoas, alguns forasteiros e outros, mais, ilhéus. Mas com estes cruza-se como se fluíssem em planos diferentes. O ilhéu mostrar-se-á sempre com um sorriso anódino, ou um semblante natural e candidamente cerrado. Não deixará transparecer, de forma a que seja perceptível por forasteiros, emoções ou esgares. São foro interno. Se a teoria dos mundos paralelos tivesse demonstração, ter-se-ia de começar esse exercício pela ilha. O forasteiro vê os limites físicos da ilha, nos alcantilados ou nas praias, em horizontes de flutuação. Nunca se apercebe do que limita o ilhéu. Vagueia pela ilha, o forasteiro, prendendo em película, hodiernamente mais em pixéis, pedaços da sua concepção de ilha. Só pedaços. O alcance da sua perspectiva, empolada pelo encantamento inicial, é sempre impotente para abarcar tudo o que os seus sentidos, globalmente, apreendem. Cores, contrastes, colapsos, recônditos e muitos pormenores que há muito perderam o interesse dos ilhéus. Captam ali, além, mas sempre o que lhes motiva o idílico. As pessoas, abstraindo os próprios, não constam das fotografias porque não se coadunam com o entendimento do idílico pelo forasteiro. As paisagens e os animais, sim. O forasteiro consumirá o seu tempo de estadia sem se aperceber da realidade da vivência do ilhéu. Este tudo fará para que o forasteiro, se resuma à paisagem, se embriague de beleza e de ténue, sem que possa estabelecer contacto com toda a dramatologia insular. De forma estranha, também o, reduzido, contacto que estabelecem, forçosamente, entre eles, flutua, tal qual a ilha, esgaçando as neblinas. Uma aberta nunca corresponde a um solarengo duradoiro. E tudo o que, ao forasteiro, é permitido observar se passa sempre entre neblinas, dependendo da sorte a oportunidade de uma boa observação.
O forasteiro retornará, encantado, num avião que romperá as brumas para atingir a limpidez das alturas. Regressa encantado para mergulhar no desencanto das rotinas da sua vida, tentando não esquecer que, durante o tempo de uma semana, ou duas, viveu um encanto.
Os forasteiros que vão restando por mais tempo têm a oportunidade de, muito lentamente, saírem do encantatório e viverem a rotina das suas vidas. Diluem-se no seio das brumas com os demais ilhéus com que se fundem.


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