Com a devida anuência da autora
“AUSÊNCIA
DE ESCOL“
UMA
INTERPRETAÇÃO DO MODO DE SER PORTUGUÊS?
A liderança é uma questão permanente
na condução da vida pública portuguesa desde 1580. Até àquela data sempre se
sentiu determinação no mando e no percurso. Com percalços, escolhos e sobressaltos
sempre houve uma conjugação de esforços entre as populações e as chefias do
estado, com um entendimento nos interesses do estado. Após aquela data sente-se
uma queixa constante de ausência de liderança ou de tibieza desta. No pretérito
mês de Novembro, no pico de mais uma crise governamental, um
ex-primeiro-ministro escreve um artigo onde aborda a degradação da qualidade dos agentes políticos em Portugal, da sua
credibilidade, competência e capacidade para conduzir os destinos do país[1]. O
tema é recorrente ao longo de décadas desde o século XVI, tendo a literatura
portuguesa expressado uma constante angústia da alma portuguesa sobre a
condução dos seus negócios ou do seu destino. Podemos considerar que Fernando
Pessoa definiu a questão quando afirmou que a
crise central da nacionalidade portuguesa deriva da sua impotência para formar
escóis, pois uma nação vale o que
vale o seu escol[2]. Há
assim sempre uma frustração por não haver uma elite que tome a dianteira e
empolgue a caminhada do povo português? Será esta frustração algo enraizado na
alma portuguesa? Estamos convictos que depois de terem ultrapassado oceanos e
de se terem, na feliz expressão do professor Sérgio Buarque, espraiado por
quatro continentes, numa gesta grandiosa para tão pequeno povo, tendo atingido
um nível de glória, talvez vã, e uma consistência na auto-estima que, após
1580, não se voltou a atingir, os portugueses regressaram, então, à sua
verdadeira dimensão e nunca mais foram capazes de viver, de se adaptarem ao seu
espaço, à sua capacidade e ao fluir constante do mundo com as respectivas
tensões. Iniciou-se uma ideia de decadência na nação portuguesa que se instalou
de forma perene na alma portuguesa[3]. Mas
em Portugal havia, no séc. XV e XVI, uma nação com uma demografia de fraca
densidade e pouco consentânea com uma expansão que não implicasse um movimento
reactivo de contracção. Os portugueses obcecaram-se com a expansão sem nunca
acautelarem a contracção. Mais não puderam fazer na expansão do que topografarem
as zonas ribeirinhas e nunca conjugaram o imperare
a não ser na Índia, mas mais por vontade indómita dos vice-reis, e dos que
com eles estavam, do que por capacidade efectiva do reino, e só por um período
curto de cinco decénios. Era tarefa tamanha para reino tão pequeno. O que ficou
bem explícito pelo Presidente da República Portuguesa, António José de Almeida,
quando em visita oficial ao Brasil em 1922, disse: venho agradecer ao Brasil o facto de se ter tornado independente[4]. 1580 marca, para
além dos episódios institucionais, o fim do apogeu português. Apogeu esse que,
ainda hoje, do substrato da sua memória se alimenta um ego perdido numa alma
que não se reflecte nos tempos hodiernos. Quantos, ainda hoje, do Presidente da
República ao presidente de junta não aludem nos seus discursos cerimoniais, e
em estilo grandiloquente, ao facto de já termos sido grandes e admirados. Ainda
hoje não conseguem fugir a falar do passado sem conseguirem dizer nada de
concreto sobre o presente e de esperança sobre o futuro. A alma portuguesa
nunca mais se adaptou ao fato que lhe tinha sido feito por medida. Os
portugueses nunca mais se adaptaram às suas reais dimensões volumétricas, quer
físicas quer anímicas. Agustina Bessa-Luís, escritora de sensibilidades, refere
as nações sujeitas à desdita da sua
própria geografia[5].
Orlando Ribeiro e Jaime Cortesão são autores que moldam a essência portuguesa
na geografia. Mas a desdita é algo
que acompanha os portugueses devido à sua geografia. Talvez seja Ferreira de Castro
quem melhor tenha traduzido a relação dos portugueses com a geografia onde,
embora não estando, se sentem anquilosados. Os
pequenos povos, que não são ricos, sabem mais geografia e sentem melhor o
universo do que os grandes; mas, em geral, grandeza é, para eles, apenas uma
sensação. Sonham muito alto, mas só sabem realizar mediocremente. Às vezes
dá-se, porém como que uma explosão de todas as ansiedades recalcadas e, então,
eles superam, em isolados feitos, não só o próprio meio físico em que vivem,
mas, até, os actos dos grandes povos[6]·. De imediato impõe-se, por si, a
questão porque nunca mais se superaram os portugueses e restaram amarfanhando-se
pelos sertões ou por detrás dos montes. Restaram quedos e à espera de algo,
mítico ou não, que lhes devolva o antigo esplendor, verdadeiro ou não, com que
alimentam a memória ou, no plano da acção, de alguém que os inebrie e os
conduza de forma empolgada para o sucesso.
Retomando o tema com Fernando
Pessoa, que nos dá o mote ao presente trabalho, tentamos distinguir o mito do
milagre, e este da capacidade natural de empreender. Pessoa afirma: As descobertas e as conquistas que se lhes
seguiram, a emigração e as guerras que ambas motivaram, arrastavam consigo, como
é natural, a parte mais forte, mais audaz, mais competente da nação. Assim se
foi destruindo o escol.[7]. Ora Pessoa
entende a nação portuguesa, até às descobertas, como uma nação guiada por uma
elite perseverante, empreendedora e dinâmica. A construção do país e a sua
consolidação foi sempre fruto da existência de pessoas que empunharam, e bem,
as rédeas da nação. Ele faz questão de precisar que o escol não quer dizer uma classe, mas uma série de indivíduos[8]. Portugal
não é um mito, não é fruto de nenhum fenómeno transcendental. É uma realidade
construída e moldada por pessoas que arreigadas à terra se sentiram nação e
irmanaram na prossecução de objectivos de consolidação de futuro e nacional. É
o que nos elucidou Alexandre Herculano ao negar o Milagre de Ourique e Fernão
Lopes ao testemunhar o empenho das populações no devir das coisas públicas. E
Luís de Camões, que na sua obra da referência nacional, se propôs cantar as armas e os barões assinalados, as memórias gloriosas daqueles reis e também
aqueles que por obras valerosas se vão da
lei da morte libertando. E são sobretudo estes, as pessoas portuguesas que
Camões enaltece:
E julgareis qual é mais
excelente,
Se ser do Mundo Rei, se
de tal gente.[9]
São
estes que estão na memória da nação, e é com eles que a nação faz a referência
do cotejo com as gerações posteriores[10]. Mas
Camões e os seus “Lusíadas” situam-se no fim do apogeu português e voltados
para o passado de que deram testemunho epopeico para o futuro. E é sintomático
que, na actualidade, Portugal festeje o dia nacional como o Dia de Camões, e
das Comunidades. Mas a data precisa, 10 de Junho, é a data da morte de Luís de
Camões e é, também, a mais antiga data comemorada no calendário nacional. Não
se comemora um início do país nem nenhuma data anterior a 1580, mas comemora-se
um fim, quer seja de uma epopeia, de um escol, de um período ou de um projecto
nacional que se esvaiu. Significará a comemoração desta data como dia nacional
o carácter fatalista do modo de ser português? Justificará o mito do Sebastianismo
que está entranhado? António José Saraiva diz que o mito é também uma forma de compensação em relação a uma realidade
frustrante[11].
Se nos debruçarmos não sobre
a história de Portugal, mas sobre a história dos portugueses poderemos seguir
passos mais seguros sobre o modo de ser português. Essa é a proposta de periodização
da história de Portugal apresentada por António José Saraiva, que é a de uma
periodização da vida dos portugueses e não a periodização institucional: Os três grandes livros sobre Portugal são Os
Lusíadas de Luís de Camões, a História de Portugal de Oliveira Martins e
Mensagem de Fernando Pessoa[12]. São três obras
que marcam o pulsar do povo português. Na mesma onda já Fernando Pessoa tinha
referido que a vida nacional portuguesa
sofre hoje dos resultados de uma tripla ruptura de equilíbrio[13]. Há que tentar
dissecar os meandros da alma portuguesa para se entender o modo de ser
português, embora nunca se chegue a resultados consensuais, pelo que estaremos
atentos no conselho de Joaquim Carvalho: Não
direi que cada português tenha uma ideia pessoal do que é e do que significa o
nosso país, mas não hesito em dizer que os portugueses não coincidem na mesma
concepção acerca de Portugal. ... O critério mais instrutivo é o que a história
propõe e a reflexão critica da concepção da vida julga[14].
Somos um povo que ousou
constituir-se em país gerado de uma nação que se implantou numa extremidade da
Europa fruto de variadíssimas enxertias e de diversas origens geográficas. Ousar
é um termo que nos fascina na história dos portugueses, porque sempre houve
ousadias singulares ou colectivas que impulsionaram este país. Terá havido uma
quebra na capacidade de ousar que tenha condicionado o devir português? Em
reflexões conjuntas temo-nos apercebido que ainda há portugueses que ousam, mas
já não com empenho colectivo. E ousam quase sempre em território estrangeiro,
com resultados produtivos lá nesse estrangeiro onde ousam. Será que o que falta
sempre aos portugueses é a liderança? Será que somos, efectivamente, de
essência sebastianista? Os factos históricos relatam-nos sempre, para as duas
primeiras dinastias, acções lideradas por reis ou condes, burgueses ou bispos e
outros destemidos que conduziam o povo nos objectivos nacionais. Com a morte de
D. Sebastião os portugueses sentiram-se órfãos logo entregues a padrastos espanhóis.
E nunca mais se recompuseram dessa orfandade. Sendo os portugueses sempre os
mesmos, qual a razão para nunca mais se empolgarem com chefia alguma? Mau
prenúncio foi, de certeza, o titubear do Duque de Bragança para aceitar o trono
de Portugal oferecido pelos que se rebelaram. E a descendência que ele originou
para o trono de Portugal não teve nenhum elemento de rasgo genial. Depois do
jugo de Espanha seguiu-se o jugo da influência inglesa numa sucessão de
humilhações, nunca combatidas, mas de forma avulsa denunciadas com uma maior ou
menor exaltação, como foi a exaltação motivada pelo Ultimatum em 1891, mas sempre inconsequente, para além de um
esmolar entre os nacionais com o propósito de se comprar um navio para a
marinha, denunciando-se publicamente a incapacidade do país para se impor no
plano internacional[15]. De
realçar que é cíclico o problema da incapacidade do país dotar a marinha, face
ao mar que Portugal sempre deteve, e que espelha na auto-estima nacional a
ideia de decadência[16].
Sentiu-se na década de 30 do séc. XX e a iniciar o séc. XXI Portugal já só
consegue alugar submarinos. O povo sempre sentiu, a partir do séc. XVII, a
incapacidade dos reis em governarem bem, pois nunca lhes sentiu a liderança
firme. Mas o absolutismo termina em 1820. O outro ponto de fractura segundo
Pessoa, e o segundo livro na perspectiva de António José Saraiva. O
parlamentarismo que se seguiu evidenciou o Portugal que subsistia de forma
independente das atribulações políticas. É esta subsistência que está presente
quando o Prof. Joaquim de Carvalho afirma: A
grande maioria dos portugueses vive o amor pátrio intuitivo e imediato,
identificando-se normalmente com o amor à terra em que nasceram e onde lhes
decorreu a primeira educação. (…) Se não erro, é o amor pátrio assim entendido,
ou melhor assim sentido, que explica em grande parte a constituição da nossa
vida civil com base no agregado familiar, o desinteresse pela vida pública como
actividade de primeira plana, e a instabilidade de todas as organizações de
significação estritamente política[17]. Esse era o
Portugal da autarcia fundamentado no municipalismo coexistente com a formação
do país. O caciquismo foi a expressão da sua representatividade que permaneceu
como fio condutor do comportamento parlamentar até aos tempos hodiernos. Por «parlamentarismo» entende-se,
segundo Machado Pires, a degradação da
vida parlamentar[18], que
é uma constante quer na monarquia, quer na 1ª República quer ainda na actual 3ª
República. O Conde de Abranhos e A Queda de Um Anjo, respectivamente de Eça de
Queiroz e de Camilo Castelo Branco, traduzem na ficção o entendimento de
Oliveira Martins no Portugal Contemporâneo. E sobre entendimentos e
interpretações posteriores A.J. Saraiva afirma: A verdadeira literatura, a verdadeira cultura têm de começar por pôr
Acácio no seu lugar, que é o símbolo da estupidez[19]. Toda a condução
da vida política, em Portugal, sustentada no sistema parlamentar, foi sempre
alvo de críticas duras e culpada dos males que, mais ou menos intensamente,
atormentam os portugueses ao longo dos últimos séculos. E que são a queixa
constante. Na Seara Nova houve sempre constantes queixas em relação ao
parlamentarismo da 1ª República[20]. F. Pessoa
exprime um lamento perante o que constatou no tempo em que vive: Aqueles portugueses do futuro, para quem
porventura estas páginas encerrem qualquer lição, ou contenham qualquer
esclarecimento, não devem esquecer que elas foram escritas numa época da Pátria
em que havia minguado a estatura nacional dos homens e falido a panaceia
abstracta dos sistemas[21]. Actualmente o
panorama é o mesmo, conforme constatámos na opinião de Cavaco Silva já citada,
ou ainda na de Vasco Pulido valente: A
élite profissional e a élite cultural já não participam hoje na direcção da
sociedade e do Estado, principalmente porque não se querem submeter ao
oportunismo, à demagogia e ao "mercado" pouco
"transparente" dos partidos[22]. A constante ao
longo de décadas é a má qualidade e incompetência das pessoas que dirigem as
coisas do estado, e normalmente no parlamento evidencia-se essa mediocridade. A
2º República, em reacção, não foi parlamentar. Nas mãos de nação estrangeira podiamos estar, se não tivesse raiado o
28 de Maio. Foi essa reacção que levantou o nosso país! Fez-lhe a face,
concertou-o! Deu-lhe o nome de outróra feito á custa de inúmeros sacrificios e
de sangue. … Dilectos filhos são esses! Antepoêm aos interesses da vida, os
altos principios que vitalisam uma Patria[23]. Era assim que a
população reagia perante a actuação da 1ª República. Bem como muitos intelectuais.
Só após a 2ª Guerra Mundial é que as condições de reflexão permitem uma análise
sobre sistemas de governo, terminadas as experiências ditatoriais que
precederam e geraram o conflito mundial.
Os portugueses não são um povo que consiga, sem condução, protagonizar um
caminho bem sucedido. São um povo capaz de grandes arrojos em relação à defesa
da sua terra, compreendendo-se esta como a sua aldeia, o seu município, em
suma, o seu espaço de autarcia. E sempre, na condição, que haja alguém mais
afoito a tocar o sino a rebate. A iniciativa individual de combate não é muito
usual. Heróis em massa, no seio da turba, mas tímidos se isolados frente a algo
que não dominam quer pelo conhecimento, quer pela potência ou auto estima. No
fundo é este o entendimento do professor Joaquim de Carvalho sobre os
portugueses que vivem amor pátrio
intuitivo e imediato. Que não se adaptam na sua geografia, todos eles,
incluindo elites intelectuais ou não, às dinâmicas que os séculos têm
imprimido. Uma sociedade camponesa, isolada,
quase indigente e quase sempre sujeita a tiranias várias, não se transforma em
30 ou 40 anos numa sociedade individualista, inovadora, solidária e
disciplinada[24].
E essas sociedades não tiveram lideranças que as empolgassem num projecto comum
nacional. Depois do século XVI a nobreza portuguesa deixou de ter homens
lutadores e empreendedores, e passou a um bando de maneiristas e dilapidadores,
cujo exemplo de vida não dignificou a vida nacional nem os que, na ilusão, os
copiavam na perspectiva de se melhorarem socialmente. Os cidadãos, que depois
de 1820, se dedicaram à política não foram, geralmente, dos melhores ou não se
comportaram de forma consentânea com a gestão da Res Publica. Os povos devem ser conduzidos pelo conjunto dos seus
melhores, o escol, pelo equivalente actual do antigo «conselho da tribo». Que
elites? Que escol? Agostinho da Silva entende que os intelectuais portugueses têm sido, de uma forma geral, estrangeiros
em Portugal[25].
Nesta quebra das elites, quer intelectuais ou não, não se pode ignorar o
contributo negativo que a inquisição que cerceou de forma irremediável o
desenvolvimento da cultura em Portugal, sob todas as vertentes da cultura,
levando a um definhar por amordaçamento o pensamento português. Como resultado
de tudo isto as elites não geraram nenhum escol digno desse nome, não cumpriram
o seu papel, ou, talvez, nem tenham chegado a ser elites. Os resultados são
visíveis até aos nossos dias pela ausência de empenho do exercício da
cidadania, pois entretanto havia minguado
a estatura nacional dos homens. O que motiva, no caos, a aspiração a uma
ordem, mesmo que tirana, ou seja, a assumpção de um guia para percurso, guia
esse, obviamente, iluminado. Dirigidos
por uma personalidade tão extraordinária, caso rarrissimo de encontrar, vivem
os portuguêses consolando-se na politica pacificadora, de ordem e bem estar![26]
Ferreira de Castro, talvez mais
conformado, ou então bom conhecedor dos seus compatriotas, discorria assim: … as frequentes passagens da tirania para a
liberdade política e da liberdade para a tirania. É o drama das pequenas
nações: o ódio entre os seus homens mais notáveis e os que aspiram a ser
notáveis também; a inveja à situação do vizinho e a revolta contra o bem estar
que uns têm e outros não; são todas as expressões de uma psicologia
insatisfeita, num campo muito limitado e sáfaro[27]. A falta de
qualidade moral, cívica e intelectual nas elites portuguesas, que por isso não
formam escol, é que permitem a permanência de um sentimento de decadência no
povo português. Embora sobre a decadência haja divergências, não as há na
qualidade das elites. Sobre a decadência diverge, por exemplo, Vasco Pulido Valente,
que considera os portugueses pouco dinâmicos porque a sociedade portuguesa é uma tábua rasa, por onde passa quem quer para
onde quer. Mas nem esta anomia, nem esta complacência começaram ontem. Vêm
detrás. De uma longa história de hipocrisia, oportunismo e trapaça, que são
hoje a nossa genuína cultura. No que tem de paroquial, e não de
"europeu", a presente "depressão" do país não surpreende ou
comove quem conhece a doença da nossa inferioridade colectiva. Uma doença com
que nos damos bem, aliás[28]. Para António
José Saraiva a decadência é um contra mito porque
não tem a função de justificar e motivar a acção colectiva porque é a expressão de uma ausência de ideal, da
incapacidade de dar um sentido à vida colectiva[29], no fundo, a
falta do escol. Pode-se antever, aqui, uma questão de identidade, mas estamos
convictos que a existência de uma história longa de séculos e com uma cultura
expressa em várias vertentes, com maior ou menor impacto coincidente com a
evolução do percurso do país, a identidade está bem definida, pelo menos até ao
início do século XXI. O problema pode-se vir a pôr para o futuro. Tem havido
várias chamadas de atenção para o país e, especificamente, para governantes,
sobre as necessidades de se precaver as boas condições para a gestão do
desenvolvimento cultural. E a necessidade das elites envolverem nesta
preocupação todo o cidadão para que sinta o problema como seu e do seu futuro. Um povo sem consciência – e até orgulho do
passado, não sobrevive no futuro. O ensino da sua História e da sua Língua é
fundamental para defender a sua identidade[30]. Eduardo
Lourenço, todavia, põe a tónica da identidade no seu excesso: Ao contrário do que muitas vezes é dito, não
sofremos de falta de identidade mas antes do excesso de identidade. A nossa
preocupação de imagem, de sermos vistos, é doentia. É uma obsessão narcísica,
que não tem razão de ser[31]. A imagem que
projectam, ou antes, a imagem que os portugueses pensam, ou gostariam de
pensar, é algo que persegue o imaginário português. Isso é patente na
literatura do século XIX, na admiração pelo estrangeiro, pelo que é importado
de fora. Mas o entendimento que os outros têm do comportamento português não é,
normalmente, coincidente o entendimento português. E em algumas vezes
espelharam bem a visão da anomia portuguesa. Foi o que Serrano Suñer expressou
a Hitler em 1940: A pesar del disparate geográfico que supone la
existencia de Portugal, … España declinaba adueñarse de él y de los siete
millones de «portugueses llorones»[32]. Olhando para os dias de hoje vemos
um povo vemos que justifica com alguma razão a afirmação de Suñer. Os portugueses
hoje sentem-se irresponsáveis de cidadania. São irresponsáveis na condução nas
estradas, na educação dos filhos, no exercício da cidadania política, etc. O
estado é responsável por tudo, ou então a União Europeia, conforme se pode
constatar pelas queixas dos cidadãos nos noticiários televisivos, onde nunca
assumem nenhuma responsabilidade culpando tudo e todos, sobretudo esse Estado
que não dá resposta cabal à cidadania consciente. A falta das elites, ou sua
demissão, projecta a sociedade portuguesa para a apatia e irresponsabilidade
cívica, gerando falta de contacto para um, como disse Machado Pires, verdadeiro projecto englobante que
permita à nação reencontrar-se com o seu destino e plena de auto estima. Mas as sensibilidades de Agustina Bessa-Luís
deixam-nos ligeiramente cépticos: Era (a
revolução de 25 de Abril) um compromisso
com a História que contava com a reserva dos intelectuais, sempre traidores das
massas por mais que elas constem da cartilha revolucionária[33].
Para os portugueses do futuro continuam válidas as palavras de esperança de
Fernando Pessoa, na última fractura e terceiro livro, A Mensagem, referenciado
por A. J. Saraiva. No fundo a falta de escol remete sempre os portugueses para
D. Sebastião, a não ser que a crença na cultura seja partilhada por todos os
portugueses em sintonia com António Machado Pires[34].
Ponta Delgada, DEZ 2004
B.M.L.V.C.Grave
[1]- Aníbal Cavaco Silva, Os
Políticos e a Lei de Gresham, in Expresso nº 1674 de 24.11.2004, Lisboa,
pg. 28.
[2]- Fernando Pessoa,
Portugal, Sebastianismo e Quinto Império, Europa-América, Lisboa, 1986,
pg 55.
[3] - Cf. António Machado
Pires. - A Ideia de Decadência na Geração de 70.
[4] - Adriano Moreira. - A
Nação Abandonada, Intervenção, Lisboa, 1977, pg 71. Cf também Vitorino
Nemésio, Jornal do Observador, pg 352.
[5] - Agustina Bessa-Luís, A
Quinta Essência, Guimarães Editores, Lisboa, 1999, 4ª edição, pg. 131.
[6] - Ferreira de Castro, A
Volta ao Mundo, I Volume, Circulo de Leitores, Amadora, 1986, pg. 64.
[7] - Idem nota 2.
[8] - Ibidem.
[9] - Luís de Camões, Os
Lusíadas, 3ª Ed., Porto, Porto Editora, pg. 127.
[10] - António Machado Pires, Os
Lusíadas, A Mensagem e as Comemorações Camonianas, in Arquipélago Nº III, Janeiro de 1981: O (poema) do século XVI dirige-se a uma sociedade em declínio, à qual
as proezas do «peito ilustre lusitano» podem servir de exemplo a revitalização.
pg. 54.
[11] - António José Saraiva, Os
Mitos Portugueses, Jornal de Letras, 17.03.1981, in Crónicas, Quidnovi, Matosinhos, 2004. pg. 599.
[12] - António José Saraiva, A
Tertúlia Ocidental, 2ªed.,Lisboa, Gradiva, p.102
[13] - Idem nota 2, pg. 64.
[14] - Joaquim de Carvalho, Obra
Completa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, volume V, pg. 125
[15] - Cf. Virgílio Carvalho, O que Faz Portugal é o Mar,
in Jornal de Noticias, Porto, 26.07.2004.
[16] - Adriano Moreira, A
Relação com o Mar, in Diário de Noticias, Lisboa, 30.12.2003:
[17] - Joaquim de Carvalho, Obra Completa -V vol., Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1987,p. 126
[18] - António Machado Pires Pires,
A Ideia de decadência na Geração de 70, Universidade dos Açores, Ponta
Delgada, 1980, pg. 210.
[19] - Idem nota 11, Os
Acácios Na Literatura Portuguesa, Jornal do Fundão?, Agosto de 1963, pg 303.
[20] - Cf. Vários, SEARA
NOVA, Antologia, Organização de
Sottomayor Cardia, Volume I, Lisboa, Seara
Nova, 1971.
[21] - Fernando Pessoa, Páginas
de Pensamento Político-1, Lisboa, Europa-América, 1986, pg. 32.
[22] - Vasco Pulido Valente, A
Candidatura de Cavaco, in Público, 26.11.2004.
[23] - Manuel Lucas Goulart, O
QUE SERIAMOS? ONDE ESTARIAMOS? in “Açoreano Oriental” de 8/4/1939,
nº5376, ano 104.
[25] - Victor Mendanha, Conversas
com Agostinho da Silva, Pergaminho, Lisboa, 9ª Edição, pg. 43.
[26] - Manuel Lucas Goulart, Festejando duas Datas in “Açoreano Oriental” de 29/4/1939, nº5379,
ano 105
[27] - Idem nota 6.
[28] - Vasco Pulido Valente, A
“Depressão” Portuguesa, in
Público, 21.11.2004.
[29] - António José saraiva, Os
Mitos Portugueses, Jornal de Letras, 17.03.1981, in Crónicas, Quidnovi,
Matosinhos, 2004, pg. 601.
[30] - António Machado Pires, A
Identidade Portuguesa, in Arquipélago, VOL. XV, UAC, Ponta Delgada, 1998,
pg329.
[31] - Eduardo Lourenço, Entrevista
à Revista Única, Expresso nº 1676 de 11.12.2004, pg 50.
[32] - Paul Preston, Franco
“Caudillo de España”, Mondadori, Barcelona, 1999, pg. 481.
[33] - Idem nota 5, pg 19.
[34] - Idem nota 30: Cremos na cultura – “aspecto inteligível da
História”, como disse Toynbee – como único verdadeiro projecto englobante, pela
medida do humano que encerra e pressupõe. Só ela permitirá sobreviver
civilizadamente e com identidade num mundo tão agressivamente desenvolvido e
equipado.
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