LIBERDADE E QUESTÕES SOCIAIS
A liberdade é uma atitude e um estado
de espírito que tem vários patamares. O primeiro, e o mais importante, é a
assumpção de um indivíduo ser livre perante si próprio. Sendo livre perante os
seus próprios temores, os seus próprios vícios, os seus preconceitos e as suas
ambições, o indivíduo não se sujeita. A liberdade é a capacidade individual de
não sujeição. A diminuição, ou a diluição desta capacidade, coloca o indivíduo
na dependência de uma, ou múltiplas, manipulações. A expressão escravo do vício
pode ser expandida para escravo dos temores, dos preconceitos e das ambições.
Todavia não se pode escamotear que a fragilidade da sobrevivência da vida é um
factor que diminui, de forma exponencial, a capacidade de não sujeição. Manter
a liberdade por iniciativa própria, e não por obstar à sonegação dela por
outrem, é algo sempre difícil. Um carácter solidamente fortificado em valores é
a via para um cidadão ser livre com dignidade.
Este
problema da liberdade é uma constante na história da humanidade. E uma luta
permanente, na carne e no espírito. Da evolução dessa luta resulta um
desenvolvimento do pensamento político-social que vem a ter uma expressão
exequível com a Revolução Francesa, já nos finais do século dezoito. Que ficou
plasmada na trilogia de liberdade, igualdade e fraternidade. Doravante a
questão seria a consubstanciação dessa trilogia. A liberdade foi, e ainda é,
uma pugna que, apesar de ter sido alicerçada na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, está muito longe de ser uma realidade das sociedades. Assim
como os dois outros parâmetros da trilogia. Cada um deles não pode funcionar em
pleno independente dos outros. A igualdade foi, basicamente, estigmatizada na
igualdade perante a lei. Que embora pareça uma medida de grande alcance, a sua
execução prática perante a justiça tem sido um desastre. A documentação do
desastre é diária, e em todo o planeta, com a agravante que as sociedades,
enquanto corpos colectivos, outorgam a desigualdade. E isto tudo porque a fraternidade,
o terceiro parâmetro, nunca passou de uma palavra inscrita numa declaração. A
ausência de fraternidade é o colapso desta trilogia que brotou da Revolução
Francesa. A falta de valores e falhas de carácter individuais fizeram das
sociedades actuais um conjunto de indivíduos sujeitos aos egoísmos, às
ambições, aos vícios e aos temores. Logo são vulneráveis a manipulações de quem
detiver o poder para os manipular. Hoje deparamo-nos com sociedades sujeitas,
não livres, com muito poucos cidadãos que lutem, com denodo, pela liberdade. As
novas tecnologias de informação são um elemento precioso para as manipulações
das sociedades.
Todas
as grandes questões sociais, hodiernas, dependem da existência, ou da gradação
de ausência, dos elementos da trilogia. A realização pessoal, e digna, de cada
indivíduo é cada vez mais perturbada, e posta em causa, por forças opressoras
ás garantias e direitos individuais, porque estes são escolhos nos interesses
que professam essas forças. Começar-se-ia pela família. Hoje uma instituição
desfigurada, sufocada e agonizante. Porque, actualmente, a sobrevivência dos
indivíduos, perante o trabalho e os interesses financeiros, leva-os a
sacrificarem não só a constituição de famílias novas, como a, quando já
constituídas, penalizarem o conforto e desenvolvimento harmonioso de todos os
membros da família. A consequência permanente é o ruir da estrutura familiar, a
interrupção da passagem do testemunho de valores, a não formação sã dos
caracteres dos filhos e banalização do entendimento da trilogia saída da
Revolução Francesa. A sobrevivência torna os cidadãos rudes, egoístas e
desvalorizados. Tudo o que é incompatível com a igualdade e a fraternidade.
Chegou-se ao início do século XXI com a liberdade, a igualdade e a fraternidade
como meras figuras de retórica. Duas outras grandes questões sociais soçobraram
à voracidade dos interesses do real poder, que nunca coincide com os poderes
públicos: a instrução pública e a saúde. A instrução foi sendo degradada, num
percurso que atendesse aos interesses do poder real, de forma a ser mais
manobrável, e menos dispendioso, a manipulação das sociedades. E assim poderem
diluir a liberdade geral, sobretudo a do pensamento, já que a pressão sobre
sobrevivência, naturalmente, se encarrega de degradar, a já, anteriormente,
frágil igualdade e estéril fraternidade. A saúde é um instrumento para se
lapidar as arestas de resistência. Para além de ser um excelente meio de
enriquecimento do poder real, e depauperamento das populações e dos poderes políticos.
Outra grande questão social hodierna é o empobrecimento. Mas isso é
sobrevivência. As sociedades sujeitam-se a empobrecer, cada dia mais, na
esperança, fortuita, da sobrevivência. Poder-se-ia invocar que algumas
sociedades estão melhorando, não estão empobrecendo. O que é um facto, pois
estão, felizmente, a melhorar a sua capacidade económica. Mas é uma quimera com
um preço. Não alcançam mais liberdade, não almejam igualdade e, também, não
protagonizam fraternidade. Quando a aplicação do princípio dos vasos
comunicantes se concluir, todos estarão no sufoco para onde foram canalizados.
Como
contrariar a pressão do sufoco que está sendo feito sobre os direitos e as
garantias dos cidadãos, de uma forma geral? Lutando contra a pressão. O que só
será possível se os cidadãos, consciente e íntegros, não sucumbirem às
tentações das ambições, e não venderem os seus valores. Não só os cidadãos mas
instituições, públicas e privadas, que se formaram, ou foram constituídas, para
velarem pelos direitos e garantias dos indivíduos. Porque se, como cada vez
mais se constata, as instituições forem tomadas por cidadãos que buscam a
satisfação das suas ambições, e se predispõem à sujeição dos interesses do
poder real, traindo as instituições que os acolheram como membros lutadores de
causas, as lutas, integras, pelas causas da liberdade, tornar-se-ão cada vez
mais difíceis e menos vitoriosas.
Nenhuma
questão social terá solução se não for conduzida com liberdade. Nenhuma
liberdade frutificará se não for assumida como um valor de dignidade humana. Nenhum
homem lutará por nenhuma questão social se, perante si, não se assumir como
livre. Faz cada vez mais sentido a expressão de Ciprião de Figueiredo, «antes
morrer livres do que em paz sujeitos». O mundo vindouro será o fruto que sobreviver
da luta pela liberdade contra a opressão do poder real actual. E os valores que
se assumem pela liberdade fazem, hoje e amanhã, toda a diferença
Ponta Delgada, 8 de Janeiro, de
2012-01-31
José A. G. Grave
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