Para se entender Portugal hoje, é preciso entender a vida dos portugueses desde sempre, bem como, não o contexto, mas o texto geoestratégico de Portugal. Quem tem menos de quarenta anos já não faz, hoje, ideia nenhuma do que era viver-se em Portugal antes de ser um país suburbano rural. Quando ainda era rural, até mesmo as cidades. E como se deixou de ler até os mais velhos esqueceram. Os mais novos deixaram, entretanto, de compreender os textos escritos. Mas é preciso ir relembrando O Portugal de sempre para se entender onde se está. Não sei se perceberão, alguma vez, para onde vão.
Deixo aqui um pequeno trecho de Miguel Torga, retirado do romance "As Vindimas":
Embora o negassem à própria consciência, os patrões faziam parte da canícula que os causticava por fora e das sardinhas de espinha amarela que os salgavam por dentro.
- Quem há-de ser o do lenço?
Fizeram-se desentendidos, porque, em boa verdade, nenhuma humilhação agrada a ninguém, mesmo se é imposta pela duta necessidade de viver. E o Seara começou a olhá-los espantado. Era praxe obrigatória, na recepção, um do rancho limpar à chegada as botas do patrão. Adiantava-se dos companheiros de lenço branco na mão e, ajoelhado, procedia ao ritual. O proprietário sorria benevolamente àquele gesto de submissão e respeito, e abria a carteira.
- Então?
Depois de alguns segundos de hesitação, o Anastácio, sempre baixo como a terra, de orelha murcha disse que faria ele o serviço. E todos sentiram um alívio na alma. Se por um lado a natural dignidade os mandara resistir, o instinto de conservação temia um desfecho que os prejudicasse. Ora assim, embora o acto degradante se mantivesse e os comprometesse a todos na degradação, individualmente ficavam salvos pela abnegação do Anastácio.
O Seara alisou as guias do bigode, enquanto a testa se lhe
desfranzia.
- Ainda bem que nem sempre a estupidez leva a melhor.
Estamos portanto entendidos!
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