terça-feira, 4 de julho de 2006

NEM TUDO O QUE É, APARECE

Do artigo "Bem-vindos às Ilusões do Real" de Inocência Mata, publicado na revista Tempo em Maio de 2004, destaco o trecho seguinte:
«Zizek toma este título [Bem-vindo ao Deserto Real] a partir do filme [Matrix] pois ele pretende, nesse livro, mostrar como vivemos num mundo de ficção na medida em que não somos capazes de discernir o que há de ficção na realidade em que vivemos; ele toma como exemplo mais paradigmático, mais emblemático, a consternação mundial que se seguiu aos ataques do 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque. Como se lembram, houve mensagens de indignação de todo o mundo, inclusive daqueles dirigentes daquela parte do Mundo em que têm atrocidades muito maiores no seu país, como se aquela, a catástrofe nova-iorquina, fosse a maior do Mundo, em termos de injustiça (que foi terrível) e de números de mortos! Isto é: o Mundo assiste impassível às maiores atrocidades, inclusive do fazer quotidiano de muitos mundos nacionais, a que se vai habituando através de ensaios dos reality shows, enquanto vai perdendo, por isso, como diz Jorge Barcellos, num texto publicado há pouco tempo, "a capacidade de distinguir qual parte da realidade é transfuncionalizada pela fantasia, de forma que, apesar de ser parte da realidade, seía percebida de um modo ficcional". Isto é, exactamente por serem real, em directo, esses eventos dos reality shows, em razão do seu carácter excessivo dada a teatralização que deles é feita, nós - os espectadores comuns - tomamo-nos incapazes de integrar num outro nível essoutros eventos históricos, esses sim bem reais, integrá-los na nossa realidade (no que sentimos como tal) e, portanto, somos forçados a sentir esse real (histórico) apenas como um "pesadelo fantástico", distante. Disso resulta um privílegiamento de determinada desgraça em detrimento de outra: a dor dos ricos, poderosos e "intocáveis" torna-se mais dolorosa porque mais publicitada. Jorge Barcellos vai mais longe na sua interrogação:
Por que se deveria privilegiar a catástrofe do WTC em detrimento, digamos, do genocídio dos hutus em Ruanda, em 1994? Ou do envenenamento por gás dos curdos no Norte do Iraque no inicio da década de 90? Ou do ataque das forças indonésias à população do Timar Leste? Ou... É longa a lista de países onde o sofrimento era, e é, incomparavelmente maior do que o sofrimento em Novo Iorque, mas a população não teve a sorte de ser elevada pela mídia à categoria de vítima sublime do Mal Absoluto. (ibidem)
»
Slavoj Zizek, um autor ainda não editado em Portugal, deveria ser objecto da vossa curiosidade.

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