«Querido leitor:
Vais ler um livro que eu hoje teria escrito doutra maneira. Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e miséria. E esse. Doiro, felizmente, está em vias de mudar. Não tanto como o querem fazer acreditar certas más consciências, mas, enfim, em muitos aspectos, é sensivelmente diferente do que descrevi. Desapareceram os patrões tirânicos, as cardenhas degradantes, os salários de fome. As rogas descem da Montanha de camioneta, a alimentação melhorou, o trabalho é menos duro. Também o rio já não tem cachões, afogados em albufeiras de calmaria.
E, contudo, julgo sinceramente que não cansarás ingloriamente os olhos na contemplação do painel que pintei. Conhecer o passado -ajuda às vezes a entender o presente. Só com o sofrimento e o protesto de muitas gerações foi possível a relativa dignificação dos assalariados de agora. E, quando mais não fosse, esses sacrificados merecem a homenagem de uma lembrança. Mas há mais. A recordação do seu martírio será uma lição para senhores e servos. Os primeiros terão no espelho a imagem do que não devem voltar a ser; os segundos, a do que não devem voltar a consentir. Já sem falar na mutação social pretérita e actual. Se certas hierarquias teimam em persistir, os próprios protagonistas fazem o possível por o disfarçar. Tão fortemente sopraram os ventos da História.»
Miguel Torga, in Prefácio à tradução inglesa de “As Vindimas”, 7ª Ed., 1999.
Miguel Torga já faleceu em 1995. Os ventos estão a rodopiar. Se os senhores estudaram a lição, os servos nada aprenderam. Outros martírios virão a ser vividos por servos. Outro escritor, no futuro, contará outra vindima onde, entretanto, os que não devem voltar a consentir terão padecido. O vento sempre rodopia.
Vais ler um livro que eu hoje teria escrito doutra maneira. Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e miséria. E esse. Doiro, felizmente, está em vias de mudar. Não tanto como o querem fazer acreditar certas más consciências, mas, enfim, em muitos aspectos, é sensivelmente diferente do que descrevi. Desapareceram os patrões tirânicos, as cardenhas degradantes, os salários de fome. As rogas descem da Montanha de camioneta, a alimentação melhorou, o trabalho é menos duro. Também o rio já não tem cachões, afogados em albufeiras de calmaria.
E, contudo, julgo sinceramente que não cansarás ingloriamente os olhos na contemplação do painel que pintei. Conhecer o passado -ajuda às vezes a entender o presente. Só com o sofrimento e o protesto de muitas gerações foi possível a relativa dignificação dos assalariados de agora. E, quando mais não fosse, esses sacrificados merecem a homenagem de uma lembrança. Mas há mais. A recordação do seu martírio será uma lição para senhores e servos. Os primeiros terão no espelho a imagem do que não devem voltar a ser; os segundos, a do que não devem voltar a consentir. Já sem falar na mutação social pretérita e actual. Se certas hierarquias teimam em persistir, os próprios protagonistas fazem o possível por o disfarçar. Tão fortemente sopraram os ventos da História.»
Miguel Torga, in Prefácio à tradução inglesa de “As Vindimas”, 7ª Ed., 1999.
Miguel Torga já faleceu em 1995. Os ventos estão a rodopiar. Se os senhores estudaram a lição, os servos nada aprenderam. Outros martírios virão a ser vividos por servos. Outro escritor, no futuro, contará outra vindima onde, entretanto, os que não devem voltar a consentir terão padecido. O vento sempre rodopia.
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