«A identificação da Igreja com a sociedade organizada constitui a característica fundamental que distingue a Idade Média, tanto dos períodos históricos que a antecedem, como dos que lhe sucedem. Numa medida mais ampla, caracteriza a história europeia, desde o século IV ao século XVIII, isto é, desde Constantino a Voltaire. Teoricamente, durante todo este período, só os crentes ortodoxos e obedientes usufruíam dos direitos da cidadania integral. Mas, no ocidente da Europa, tal doutrina só conseguiu plena vigência prática a partir do século VII. E, ao chegar ao século XVII, encontrava-se já tão marcada por excepções e contradições que se tornara inconcebível, mesmo idea1mente. Durante os primeiros séculos, contudo, as excepções mostravam-se raras, pelo que, razoavelmente, podia supor-se que tenderiam a desaparecer.
Na verdade, sempre existiram indivíduos à margem do sistema, mesmo dentro da área geográfica da cristandade ocidental, embora no melhor dos casos se tratasse de pessoas com direitos muito limitados. No pior dos casos, não possuíam sequer o direito de viver e, na melhor das hipóteses, eram judeus. As suas vidas e bens elementares encontravam-se protegidos pela lei eclesiástica e pelos interesses egoístas dos príncipes. Não podiam ser suprimidos pelo simples facto de serem judeus; não podiam ser convertidos à força; não podia retirar-se-lhes os filhos, para lhes dar educação cristã; permitia-se-lhes a prática da sua religião, desde que não fizessem obra de proselitismo. Mas os governantes nada mais concediam que a estrita autorização de sobreviverem como pudessem. «Por causa dos seus pecados» [da descrença], escreveu São Tomás de Aquino que,
sujeitos à servidão perpétua, os seus bens dependem do arbítrio doa governantes; estes não devem espoliá-los a um ponto tal que se vejam privados dos meios de subsistência,
Se tal era o caso da classe mais privilegiada dos seres marginais, dos consentidos inimigos de Deus, nem sequer se concedia o direito à vida aos que abandonavam a fé cristã e preferiam viver longe desta, por sua livre escolha. Viam-se varridos da existência pelo zelo popular, pela censura eclesiástica e acima de tudo pelo rigor de uma lógica imperturbável:
A heresia [de novo citamos Tomás de Aquino] é um pecado que, merece não só a excomunhão, mas também a morte, por ser pior corromper a Fé, que é a vida da alma, do que falsificar moeda, que governa a vida secular. E se os falsificadores são justamente eliminados pelos príncipes, como inimigos do bem comum, os hereges merecem sem dúvida o mesmo castigo.
Numa palavra, a Igreja formava uma sociedade repressiva, tal como o é hoje o Estado moderno. Assim como este exige aos que se tornaram seus membros, por acidente de nascimento, que cumpram as leis, que contribuam para a defesa e para os serviços públicos e que subordinem os interesses particulares ao bem geral, também a Igreja da Idade Média exigia a todos os que se haviam tornado seus membros pelo acidente (chamemos-lhe assim) do baptismo, a obrigatoriedade de lhe obedecerem em todas as suas normas.
O problema de determinar como se transforma uma dada pessoa num membro de certa comunidade política, preocupou bastantes teorizadores das origens e formação do Estado moderno. Mas, para os doutrinários do Estado-Igreja medieval, tal problema afigurava-se-Ihes fácil, pois a resposta consistia no baptismo, em que os padrinhos aceitavam, em nome da criança, determinados compromissos que a condicionaram legalmente durante toda a vida. De um ponto de vista social, estabelecia-se um contrato entre a criança e a Igreja, que não podia deixar de ser cumprido. O baptismo era assim, para a maior parte dos membros da Igreja, tão involuntário como o nascimento, e significava obrigações de um tipo permanente e coercivo, semelhantes às que aquele representa no Estado moderno, com a agravante de não poder renunciar a elas.»
Na verdade, sempre existiram indivíduos à margem do sistema, mesmo dentro da área geográfica da cristandade ocidental, embora no melhor dos casos se tratasse de pessoas com direitos muito limitados. No pior dos casos, não possuíam sequer o direito de viver e, na melhor das hipóteses, eram judeus. As suas vidas e bens elementares encontravam-se protegidos pela lei eclesiástica e pelos interesses egoístas dos príncipes. Não podiam ser suprimidos pelo simples facto de serem judeus; não podiam ser convertidos à força; não podia retirar-se-lhes os filhos, para lhes dar educação cristã; permitia-se-lhes a prática da sua religião, desde que não fizessem obra de proselitismo. Mas os governantes nada mais concediam que a estrita autorização de sobreviverem como pudessem. «Por causa dos seus pecados» [da descrença], escreveu São Tomás de Aquino que,
sujeitos à servidão perpétua, os seus bens dependem do arbítrio doa governantes; estes não devem espoliá-los a um ponto tal que se vejam privados dos meios de subsistência,
Se tal era o caso da classe mais privilegiada dos seres marginais, dos consentidos inimigos de Deus, nem sequer se concedia o direito à vida aos que abandonavam a fé cristã e preferiam viver longe desta, por sua livre escolha. Viam-se varridos da existência pelo zelo popular, pela censura eclesiástica e acima de tudo pelo rigor de uma lógica imperturbável:
A heresia [de novo citamos Tomás de Aquino] é um pecado que, merece não só a excomunhão, mas também a morte, por ser pior corromper a Fé, que é a vida da alma, do que falsificar moeda, que governa a vida secular. E se os falsificadores são justamente eliminados pelos príncipes, como inimigos do bem comum, os hereges merecem sem dúvida o mesmo castigo.
Numa palavra, a Igreja formava uma sociedade repressiva, tal como o é hoje o Estado moderno. Assim como este exige aos que se tornaram seus membros, por acidente de nascimento, que cumpram as leis, que contribuam para a defesa e para os serviços públicos e que subordinem os interesses particulares ao bem geral, também a Igreja da Idade Média exigia a todos os que se haviam tornado seus membros pelo acidente (chamemos-lhe assim) do baptismo, a obrigatoriedade de lhe obedecerem em todas as suas normas.
O problema de determinar como se transforma uma dada pessoa num membro de certa comunidade política, preocupou bastantes teorizadores das origens e formação do Estado moderno. Mas, para os doutrinários do Estado-Igreja medieval, tal problema afigurava-se-Ihes fácil, pois a resposta consistia no baptismo, em que os padrinhos aceitavam, em nome da criança, determinados compromissos que a condicionaram legalmente durante toda a vida. De um ponto de vista social, estabelecia-se um contrato entre a criança e a Igreja, que não podia deixar de ser cumprido. O baptismo era assim, para a maior parte dos membros da Igreja, tão involuntário como o nascimento, e significava obrigações de um tipo permanente e coercivo, semelhantes às que aquele representa no Estado moderno, com a agravante de não poder renunciar a elas.»
R. W. Southern, in "A IGREJA MEDIEVAL"
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