quarta-feira, 1 de novembro de 2006

E AINDA MAIS SOBRE O PORTUGAL-ESPANHA

Não posso deixar de incluir neste blog um artigo saído ontem, aqui, no Público. Para reflexão.

«E a Espanha aqui tão perto
sem fronteiras

1.Fernando Neves, o embaixador português que exerceu até Julho passado as responsabilidades de secretário de Estado dos Assuntos Europeus e que, há quase 30 anos, levou a Bruxelas a carta formal com o pedido de adesão de Portugal à então CEE, recordou uma velha história das negociações dos dois países ibéricos que reflecte bem o modo como cada um deles se vê a si próprio e aos outros. Pouco depois dos pedidos formais, uma delegação da Comissão Europeia veio a Madrid e a Lisboa para elaborar o chamado "fresco" da situação dos dois países - primeiro passo para determinar a estratégia negocial. Quando aterrou em Lisboa, vinda de Madrid, a primeira coisa que um dos seus membros disse aos portugueses foi o seguinte: "Acabámos de chegar da primeira sessão das negociações das Comunidades Europeias com a Espanha." Fernando Neves contou esta história em Cáceres, na semana passada, durante uma conferência organizada pela Junta da Extremadura com o lema A Casa Comum Europeia, 20 anos que mudaram Espanha e Portugal. Pouco depois, o seu parceiro de debate, o embaixador Javier Elorza, certamente um dos diplomatas espanhóis com mais experiência europeia, confirmaria, provavelmente sem querer, a moral desta história. Sem sequer pestanejar, Elorza, que esteve em Bruxelas à frente da representação espanhola durante muitos anos, explicou como foram os dois países ibéricos (foi simpático, mas estava certamente a pensar na Espanha) que ofereceram à Europa uma política externa. O mais interessante é que isto nem sequer soa a arrogância, parece apenas reflectir uma ilimitada autoconfiança de um país que, ao libertar-se do franquismo e ao integrar-se na Europa e na NATO, não mais deixou de se sentir determinado, seguro e confiante.
2. A economia corre-lhe bem. Bem demais, quase me atreveria a dizer, depois de ouvir, na mesma conferência de Cáceres, José Luís Malo de Molina, director-geral do Gabinete de Estudos do Banco de Espanha, explicar as razões do longo ciclo de expansão económica da Espanha, que soma e segue. Com um excedente orçamental e uma dívida a rondar os 40 por cento, muito abaixo da média europeia, a economia espanhola está a crescer duas vezes mais do que a média da zona euro, graças sobretudo ao investimento. A redução acentuada do desemprego (que foi muito alto nos anos 90, graças aos ajustamentos estruturais da economia) andou a par com um crescimento muito forte da população, devido sobretudo à imigração (a Espanha passou de 40 milhões para 44 milhões de habitantes entre 1999 e 2005), que representa hoje cerca de 10 por cento da população activa. Como sublinhou o economista do Banco de Espanha, a emigração ajudou a criar emprego e ajudou a aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho, reduzindo acentuadamente a taxa de desemprego. O reverso da medalha é um crescimento moderado da produtividade, que exigirá agora novas prioridades políticas. Há sempre um reverso da medalha, mas há medalhas melhores que outras, e a grande conclusão que se pode tirar da exposição de Malo de Molina, mas também da de Felipe González que, com Mário Soares, abriu os trabalhos da conferência, é muito simples: a Espanha soube lucrar enormemente com o euro porque se preparou para ele flexibilizando a sua economia. Colocado perante uma pergunta sobre as razões do sucesso económico prolongado de Espanha, Malo de Molina apontou razões das quais todos nós já suspeitávamos. A continuidade das políticas económicas dos governos González, Aznar e Zapatero e, sobretudo, a continuidade das reformas. "O que foi fundamental foram as transformações das estruturas económicas de Espanha para se adaptar. Em Portugal foi mais lento", diria também Felipe.Foi isso precisamente que nos faltou, prepararmo-nos para o euro. "Portugal não interiorizou as exigências da moeda única. Nem o Estado, nem os sindicatos, nem as empresas", como disse Francisco Sarsfield Cabral, a quem coube a ingrata tarefa de contrapor a situação económica portuguesa à espanhola. E o problema é que continua a ser muito difícil fazer mudanças em Portugal. O debate é pobre, o Estado é omnipresente e paternalista, a sociedade civil fraca.
3. A conferência foi organizada no âmbito da Ágora, uma iniciativa anual da Junta da Extremadura que só por si reflecte o dinamismo de uma região espanhola que é das menos ricas mas que percebe que tem tudo a ganhar abolindo a fronteira que a separa de Portugal. A ideia era justamente comparar os caminhos percorridos pelos dois países - divergências e convergências - e ver se entre ambos havia interesses comuns suficientes e uma visão suficientemente partilhada para poderem pesar positivamente numa Europa hoje mergulhada numa profunda crise de destino.Em muitas coisas, os dois países convergem. Para começar, nalgumas das suas prioridades externas e na vontade de levar a Europa a agir de forma mais convincente e unida no Mediterrâneo ou na América Latina. Ambos têm o mesmo interesse vital em manter-se no "centro" da construção europeia, seja qual for o domínio da integração, da economia à defesa. Ambos procuraram (com a excepção, em parte, de Aznar) alinhar as suas políticas europeias pelo eixo franco-alemão, pelo menos enquanto funcionou como o motor da Europa, ou pela Alemanha, que funciona agora e cada vez mais como o pólo da integração. Mário Soares juntou a este património europeu comum a convergência das políticas internas, graças à identificação ideológica entre os dois primeiros-ministros socialistas, Sócrates e Zapatero, para defender em Bruxelas uma união política assente na coesão do seu modelo social. Há muito de comum entre os dois países ibéricos na forma como vêem a Europa, que radica precisamente na sua experiência feliz de integração europeia. Como sublinhou Álvaro de Vasconcelos, também em Cáceres, ao contrário do que se passa em muitos outros países, não estamos a sofrer dos males da xenofobia e do nacionalismo, não tememos os alargamentos, não somos contra a Turquia, acreditamos na força dos valores europeus. Mas esta crise europeia, como muitos participantes também sublinharam, de Felipe a Carlos Gaspar ou a Gil Robles, não é uma crise como as outras. Nem é, muito menos, apenas uma crise constitucional. A Constituição era boa, disse Felipe, mas não resolveria os problemas de fundo. Que estão mais na "agenda de Lisboa", ou melhor, no relativo fracasso de um bom diagnóstico e de uma boa estratégia, do que nas soluções institucionais.António Vitorino colocaria as coisas do mesmo modo. O problema maior é que não há um acordo sobre o que deve ser a Europa no século XXI. Há duas visões da identidade europeia - uma com Turquia e outra sem Turquia. Há duas visões da Europa sobre a sua relação com o mundo globalizado - uma que a vê como um projecto que nos protege dos ventos da globalização e que transpõe para a União Europeia o velho proteccionismo nacional. Outra que só vê um novo sentido para a Europa se nos permitir agir globalmente, económica e politicamente, com todas as consequências que isso tem nas políticas internas. Europa fortaleza ou Europa aberta? Eis o dilema europeu. Vitorino deixou também um bom conselho: "A melhor maneira de se ser optimista hoje, na Europa, é começar por ser pessimista."

1 comentário:

Xosé Manuel Carreira disse...

Eu acho que nao é bom ser completamente pessimista, senao um bocadinho reluctante mas auto-confiante. A Europa tem muito futuro e o role de Portugal é, de facto, muito importante para as comunidades fronteiriças da Espanha que partilham com vocês muitos dos problemas. Sorte!