domingo, 5 de novembro de 2006

VAGUEAVA

Vagueava por S. Catarina. Sem abrigo das transversais de Santa Catarina ou de outras paragens mais para o lado da Ribeira. Passeava entre casais com os filhos. Sábado de compras. De castanhas assadas. Também já foi casado. Mas sobreveio o divórcio destrutivo. A seguir o desemprego, sem que ele tenha contribuído para a falência da empresa. Deixou de estar, deixou de ter, deixou de ser. Aos quarenta e sete anos a sociedade, o país diagnosticou-lhe velhice. Então é que perdeu mesmo a dignidade, pois essa doença incapacitante para o trabalho, destrói o que resta de auto-estima. Deambula pelo Porto. Já nem sequer tem pachorra para tentar deambular por Lisboa. Alguns que se cruzam com ele fazem por não o reconhecer. Outros não o reconhecem mesmo, tal a transformação que as vicissitudes da vida lhe impuseram. Também já todos lhe são indiferentes. Até a família. Deambula quase abstracto. Nos andares lá de cima estarão muitas pessoas. Todas solitárias. Muitas relacionando-se com as telas dos seus PCs, comentando no tom do politicamente correcto tudo e todos. Vigiando a manutenção dos seus interesses, mas incapazes de um gesto solidário com quem deambula pela cidade sem ter onde se abrigar. Só os voluntários lhes levam algo, incluindo o carinho de uma palavra. Também ele já morou num andar e tinha um PC. Também comentou sem solidariedade nenhuma. Deixou de ter, deixou de ser, deixou de estar. Deixaram-no.

2 comentários:

Moon disse...

Ups...
Ia eu 'saltar' de contente pela abolição daquelas simpáticas palavrinhas e dou de caras com este post.
Pronto, agora com um ar mais solene aqui vai o comentário:
Também já cometi e continuo a cometer o "crime" da indiferença ou pelo menos da passividade. As desculpas são várias: a falta de tempo, o trabalho, os filhos, a casa... e podia continuar por aí fora. Estou consciente que nenhuma delas é válida. Quando se quer mesmo arranja-se tempo.
Os que me são mais próximos estão a salvo, normalmente sou atenta e não os descuro, melhor, não passo sem eles, sou melosa (mas não melga:)! Para o resto do mundo vou ter de arranjar tempo.
Costumo defender que se cada família se preocupasse, a sério, pelo menos com os seus isto andava um pouquito melhor. Mas também tenho consciência de que isso nem sempre é viável, por vezes as diferenças são irreconciliáveis e existem histórias difíceis por detrás de cada um de nós. Os humanos são muito complexos!...
E a solidão mata... ou como canta o Rui Veloso "é dura...".
Bem, vou mimar a minha gente: fazer-lhes o jantar! E isto é mesmo um mimo porque não gosto muito de cozinhar. Assim, cada ida à cozinha é uma boa acção e uma prova de amor (se eles me ouvissem, melhor, lessem:)...)
Deixo aqui um sorriso

Moon disse...

P.S. Grata pela extinção das palavrinhas:)